Histórias mínimas, selvagens, breves, extraordinárias: uma introdução

Em 2008, me encontrei pela primeira vez com Lucrecia Martel. Terminava a graduação em jornalismo e estava feliz e surpresa por ter conseguido uma credencial de imprensa (uau!, pensava eu) para um prestigioso evento no qual a cineasta participaria no Brasil. O objetivo era entrevistá-la para meu trabalho de conclusão de curso. Por que ela? Nem ideia. Eu apenas sabia que não sabia o que iria fazer com aquele diploma de jornalismo que chegaria em breve, transformando-me de estudante em desempregada. Sabia também que me divertia muito cuidando do cineclube da universidade.

Exibi O pântano (La ciénaga, 2001) nesse cineclube e foi quando o assisti pela primeira vez. Nunca esqueci, ao final da projeção, a cara de espanto de meu amigo Cesare Rodrigues (que para mim era a pessoa mais brilhante daquela universidade, e escrevendo isso morro de medo dos erros gramaticais que ele e seu português impecável podem encontrar aqui). Se o Cesare fazia aquela cara, é porque havia algo de muito arrebatador naquele filme e era preciso prestar atenção.

Porém, não era meu debut com Martel. Pouco antes, buscando colocar em prática as aulas de espanhol, aluguei na locadora (!) um DVD cuja capa era quase totalmente tomada pelas costas de um homem e, no centro da imagem, se vislumbrava o olhar de uma garota que se parecia com aquelas madonas que se pintavam no século XVI. Era um olhar tão misterioso e assustado e inquisidor e sedutor e inocente que exercia uma força centrípeta e nos puxava para ele apesar da pequena fração que ocupava no quadro. Bom, não consegui ver o filme sem legendas e isso foi um pouco frustrante, o que não impediu que a experiência fosse imensamente mobilizadora: não podia deixar de pensar naquele final embebido de desamparo de A menina santa (La niña santa, 2004).

Pois bem, entrevistei Lucrecia, vi A mulher sem cabeça (La mujer sin cabeza, 2008) –tão desorientador quanto o estado zumbi que acomete sua protagonista –, terminei a graduação. Ingressei em um mestrado em cinema com um projeto sobre a obra dessa realizadora. Não tinha noção do que era a vida acadêmica e o que significava pesquisar de verdade, mas aí estava todo um universo ao qual terminaria felizmente me integrando.

E então, por que Lucrecia? Acho que tudo isso está mais pra um MacGuffin para contar como nasceu esta mostra. Não achei outro caminho (ainda mais às pressas!) para falar como me envolvi com o cinema argentino que não fosse através de Martel. Para entender melhor seus filmes quis entender todo o cinema argentino e a Argentina, empreitada infinita na qual mergulhei e pretendo continuar imersa. O desejo de compartilhar essa vivência é o que traz este catálogo a suas mãos e essa filmografia à CAIXA Cultural Rio de Janeiro.

Além disso, outra coisa que me diverte é como, nos últimos anos, muitas das pendengas resultantes da espirituosa rivalidade entre a Argentina e o Brasil vêm se trasladando do campo de futebol para a tela grande: o país que tem o segundo melhor jogador de futebol do mundo tem também a prateleira abastecida por diversos prêmios internacionais que fazem do seu cinema um dos mais prestigiosos do globo.

O cinema argentino é hit nas grandes premiações europeias, presença cativa na programação de festivais do mundo todo, e traz no currículo dois Oscar – os dois únicos Oscar em mãos latino-americanas, diga-se de passagem. No Brasil, percebe-se um grande interesse do público pelo cinema do país vizinho, manifestado tanto nas longas filas quando da exibição de filmes argentinos em festivais quanto nos extensos períodos em que vemos produções como Relatos selvagens (Relatos salvajes, Damián Szifrón, 2014) em cartaz – já correram quinze meses e seguimos contando.

Por que o cinema argentino vem batendo um bolão? A cada estreia argentina no circuito brasileiro, essa pergunta se repete (às vezes tendo como contraponto o cinema nacional) e lota as caixas de comentários dos sites dedicados à sétima arte.

Porém, na verdade, pouco se conhece da cinematografia hermana por aqui. Apesar do acordo Brasil-Argentina de codistribuição (um dos primeiros do mundo, assinado em 2003, e nunca efetivamente cumprido) e de um público efusivo, dificilmente tem-se acesso a produções argentinas. O país realiza em média 180 longas-metragens por ano, mas chegam apenas quatro ou cinco ao circuito comercial brasileiro, além das esparsas exibições do circuito alternativo.

Dessa forma, a mostra HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS: CINEMA ARGENTINO CONTEMPORÂNEO pretende preencher essa lacuna com uma seleção dos mais interessantes filmes produzidos nos últimos anos na Argentina – não com o objetivo de esfriar esse debate, e sim botar mais lenha na fogueira. Conhecer a cinematografia vizinha permite, também, pensar nosso cinema, por tudo o que temos de similar com a Argentina e para compreender melhor as diferenças.

Historias extraordinarias (Mariano Llinás, 2008), título que emprestei para nomear a mostra, é uma das produções que se configuram como uma ruptura com o chamado nuevo cine argentino. O nuevo cine floresceu em meados da década de 1990 impulsionado por uma série de fatores como a criação de uma lei de fomento ao setor (que apoiava a produção através de créditos, subsídios, concursos e programas de ação através do Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales – INCAA), a reativação da cota de tela para filmes nacionais, o surgimento de inúmeras escolas de cinema e o acesso a equipamentos devido à convertibilidade cambiária (1 peso = 1 dólar), que provocaram imediata reativação e dinamismo inédito no setor. Uma nova geração entrou em cena trazendo novas sensibilidades estéticas e novos princípios ideológicos. Negando com veemência o cinema produzido anteriormente, geralmente desenvolvido dentro de estúdios, o nuevo cine carregou suas câmeras leves, equipes reduzidas e orçamento restrito para filmar nas ruas.

Apesar de existir uma negação sistemática dos realizadores do nuevo cine em pertencer a um movimento, não é difícil encontrar elementos comuns entre suas obras. Em realidade, não houve uma busca programática por parte dos novos cineastas, e suas poéticas são variadas. Porém, estabeleceu-se um novo regime criativo (para utilizar a expressão de Gonzalo Aguilar), no qual todos estavam atravessados por preocupações como a austeridade da mise en scène e com um realismo estético. Lucrecia Martel, Pablo Trapero e Daniel Burman foram alguns nomes que despontaram nessa “onda”. Mas, o que acontece com o cinema argentino 20 anos depois, para além da consagração de uma porção de diretores e do estabelecimento dessa cinematografia como uma das mais prolíficas e incensadas do mundo?

Há mais de uma década já se discute que o nuevo cine transitou o tempo de uma geração inteira, lapso demasiado extenso para a dinâmica própria de um movimento cinematográfico. David Oubiña, por exemplo, escreveu em 2004 que, após dez anos, a renovação terminou por construir outro establishment, renunciando frequentemente à experimentação para refugiar-se nas convenções, na autoindulgência e no conservadorismo.

Sergio Wolf, em um debate promovido pela revista Otros Cines em 2007, denominado “Qual é a verdadeira situação do cinema argentino?”, prefere propor outro enfoque e fixar uma periodização do nuevo cine argentino a partir da estreia, naquele ano, de dois filmes que ele considera definidores devido à capacidade de refletir sobre suas próprias problemáticas: Estrellas (Federico León e Marcos Martínez) e UPA! Una película argentina (Camila Toker, Santiago Giralt e Tamae Garateguy). Nas palavras do próprio Wolf: “Justamente, a autoconsciência de dois filmes recentes como Estrellas e UPA! me faz pensar em um modelo que já é um circuito fechado, encerrado. A ironia sobre os não atores e o cruzamento entre o documental e o ficcional em Estrellas; a ironia sobre o cálculo dos novos diretores que fazem filmes pensando nos festivais em UPA!, demonstram o esgotamento de um período e propõem (inclusive através do jogo e do humor) a necessidade de passar a outra fase”.

Finalmente, Historias extraordinarias de Llinás provocou grande furor entre a crítica argentina, que o comparou, várias vezes, com Pizza, birra, faso (Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, 1997, considerado marco inicial do nuevo cine), no sentido que, depois dele, o cinema nacional não seria o mesmo. Agustín Campero escolheu a produção de Llinás para fechar seu livro Nuevo cine argentino. De Rapado a Historias extraordinarias; Jaime Pena utilizou o título para nomear a compilação Historias extraordinarias. Nuevo cine argentino 1999-2008, localizando-o como arremate da primeira década de nuevo cine ou inaugurador de um nuevo cine 2.0 que então se iniciava; e Gonzalo Aguilar o colocou como principal representante do que chamou de cinema anômalo.

A consolidação do cinema anômalo, segundo Aguilar, foi um dos acontecimentos mais significativos no cinema argentino entre 2006 e 2010, período entre a publicação de seu referencial livro Otros mundos e de sua reedição. Com este termo o autor se refere a uma série de filmes que não se vinculam ao INCAA para conseguir orçamento e que buscam instaurar outros circuitos de exibição. Assim, apesar de sua narrativa de aventuras, do excesso de elementos e da voz over predominante que confronta a estética minimalista de grande parte dos filmes do nuevo cine, Historias extraordinarias se configura como ponto de inflexão tanto pelo paradigma estético que promove quanto por sua forma de produção.

A primeira ideia que me mobilizou para a realização desta mostra implicava uma seleção composta por obras realizadas a partir da quebra que o filme de Llinás significou para o cinema argentino, propondo um olhar atualizado sobre essa cinematografia, mas naturalmente em relação ao já familiar nuevo cine. Entretanto, a imensa quantidade (e qualidade) das produções de todos esses anos que se seguiram me levou a um recorte temporal em que a palavra contemporâneo se limitou ao sentido de “tempo atual”: quais histórias extraordinárias o cinema argentino oferece HOJE?

Foi assim que, com muito prazer (e por vezes pesar, devido à impossibilidade de incluir tudo de incrível que pudemos ver), Marcelo Panozzo e eu chegamos a esse pequeno maravilhoso panorama: uma dezena de obras que, para nós, encarnam o frescor desse cinema; o mais nuevo após o nuevo. A diversidade de estéticas e poéticas brindadas pelo momento atual da produção argentina permite uma programação estimulante, em sintonia tanto com as mais inventivas correntes de renovação do cinema mundial contemporâneo quanto com o apurado manejo do cinema clássico ou de gênero (e também suas releituras).

Esses filmes foram lançados entre 2013 e 2015 e são quase todos inéditos no Rio de Janeiro. Da cada vez mais dinâmica cena documental argentina estão Damiana Kryygi (Alejandro Fernández Mouján, 2015) e Corpo de letra (Julián D’Angiolillo, 2015), títulos praticamente onipresentes nas listas de melhores filmes argentinos do ano passado. Fernández Mouján investiga a barbárie da civilização ao recuperar a triste história da cativa indígena Damiana Kryygi, enquanto D’Angiolillo – flertando com a ficção – conduz o espectador pelo mundo desconhecido e sempre noturno dos grafites políticos. Movendo-se mais pelo que hoje se costuma chamar “ensaio”, A sombra (Javier Olivera, 2015) é a mise en scène de um exorcismo particular: a demolição de uma casa, a expurgação de uma sombra, a reflexão sobre um tempo.

Como funcionam quase todas as coisas (Fernando Salem, 2015) e Fora de hora (Barbara Sarasola-Day, 2013) são os auspiciosos primeiros longas de seus diretores. Salem impõe ao estado de quietude e estancamento do deserto o movimento de sua protagonista Celina em uma pequena e, ao mesmo tempo, imensa jornada. Aos grandes planos abertos de Como funcionam... se opõem os planos sufocantes de Fora de hora, tomados pela perturbação fervilhante que um visitante provoca nos personagens e no ambiente. Junto aos estreantes está o consagrado Martín Rejtman e seu retorno à ficção após uma década com Dois disparos (2014) – que reserva grandes surpresas (ainda que anticlimáticas) para a poética rejtmaniana.

Com trajetórias intrigantes e presença assídua nos principais festivais internacionais estão Alejo Moguillansky e Santiago Mitre. No ácido e divertido O escaravelho de ouro, o acaso da linguagem e das relações se encontra com a obsessão de Moguillansky pelo espírito de cálculo e domínio das situações. Paulina, por sua vez, reafirma a vocação polêmica que Mitre havia inaugurado com seu impactante El estudiante (2011).

Resultado da parceria entre Laura Citarella e a fabulosa atriz Verónica Llinás, A mulher dos cachorros (2015) entrega, desde sua abertura, uma nova ordem: a escuridão, os fragmentos de um corpo, os desconcertantes ruídos que emergem do silêncio remetem a um registro onde prevalece o sensorial, a textura e outras formas de (con)vivência. Do outro lado do espectro formal se encontra Jess & James (Santiago Giralt, 2015) com toda sua luz e extrema agitação.

Além dessa seleção, o evento se completa com dois focos especiais. O primeiro é uma homenagem ao cineasta Marco Bechis. No ano em que se completam quatro décadas do golpe de Estado que atingiu a Argentina 24 de março de 1976, (re)pensar as marcas que essa época deixou na História e nas histórias nos parece fundamental. A exploração e a discussão do violento período de exceção vivido pela Argentina entre 1976 e 1983 encontraram lugar privilegiado no cinema: desde a redemocratização, com filmes que buscavam compreender e cicatrizar o ocorrido, como La historia oficial (Luis Puenzo, 1986), ou as reelaborações pensadas a partir de meados dos anos 1990 como Montoneros, una historia (Andrés Di Tella, 1998), passando pelos inúmeros e inovadores documentários em primeira pessoa que atravessaram a década de 2000, como o desconcertante Los rubios (Albertina Carri, 2003), até os mais recentes El premio (Paula Markovitch, 2011), Infancia clandestina (Benjamín Ávila, 2012), Tiempo suspendido (Natalia Bruschtein, 2015) ou Toponimia (Jonathan Perel, 2015), o cinema foi um importante meio para entender a ditadura que se autonomeou Proceso de Reorganización Nacional, instituindo-se, também e especialmente, como um espaço de memória e de luta.

O nome de Marco Bechis é fundamental quando se discute o Proceso no cinema argentino. Seu longa Garagem Olimpo (1999) é um marco na abordagem ficcional desses anos escuros. Na época de seu lançamento, o filme deparava o público com uma situação incomodíssima comparada à tradição a que o cinema argentino pós-ditadura estava acostumado – em especial sobre esse tema. Era um filme incômodo não por incorreção política, mas porque simplesmente (e finalmente) se dava ao trabalho de reconstruir o dia a dia de um centro clandestino de detenção e tortura.

Filhos (2001) pode ser considerado uma espécie de continuação de Garagem Olimpo ao abordar a apropriação ilegal de bebês durante a ditadura e a recuperação de suas verdadeiras identidades quando adultos – como ecoam as mortes passadas nas vidas presentes? Já no documentário recém-lançado O rumor da memória (2015), Bechis entrelaça sua experiência em um centro de detenção clandestino da ditadura com a trajetória de Vera Vigevani Jarach, cuja vida é atravessada por duas tragédias históricas (além do Proceso, o Holocausto).

O segundo foco promove uma programação infantil que busca colocar os pequenos em contato com filmes que, dificilmente, são encontrados nos cinemas brasileiros ou na televisão. Além do potencial de entretenimento, as obras selecionadas procuram estender um caminho para que as crianças possam conhecer novas culturas – ou viajar para terras distantes em fantásticas aventuras. Buscamos formar novas plateias e encorajar os jovens espectadores a serem criativos, críticos e curiosos.

Ademais, as três produções que compõem esse foco comportam diferentes registros, abrindo um leque para distintas percepções. Basicamente um poço, realizado coletivamente pelo festivo Grupo Humus (2009), pode ser descrito como uma mistura de ficção científica e comédia em live action. A fábula Rodência e o dente da princesa (David Bisbano, 2013) é uma animação gráfica. A lista se completa com um conjunto de curtas-metragens do premiadíssimo Juan Pablo Zaramella, formado por animações realizadas com diferentes técnicas como stop motion e pixilation.

Enfim, a mostra HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS procura esboçar uma ideia sobre o presente da produção argentina, tentando pisar firme sobre a areia movediça que é o cinema contemporâneo e buscando mobilizar os filmes como uma forma particular de panorama. Apesar de soar como uma tarefa cartográfica, com a tentativa de assinalar tendências, rumos e linhagens, a atenção da curadoria sempre privilegiou a singularidade de cada película, prescindindo da aspiração de construir um mapa estático ou de pensar os longas como exemplares representantes de uma totalidade cerrada. Assim, a programação se identifica mais como um ponto de vista e, especialmente, um ponto de encontro com essa cinematografia.


Será uma alegria compartilhar e discutir essas histórias extraordinárias!


Natalia Christofoletti Barrenha
Curadora